Esta é uma edição do Brazil Brief. O Brazil Brief é um relatório semanal sobre o que de mais relevante foi noticiado pela imprensa estrangeira sobre o Brasil (ou seja, nenhum artigo expressa a opinião do Spotniks). O objetivo é entender como o mundo nos enxerga. Hoje, excepcionalmente, o artigo foi produzido pelo Spotniks.
Vai ao ar sempre às terças.
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O que aconteceu no Rio Grande do Sul nessa última semana é resultado de uma ameaça íntima na vida de milhões de pessoas ao redor do mundo.
Desde 1980, as inundações mataram mais de 250 mil seres humanos, em mais de 4.500 eventos, em 172 países.
As inundações são, de longe, a catástrofe natural que ocorre com maior frequência no nosso planeta, responsável por mais de 1/3 das mortes relacionadas com catástrofes naturais.
Cerca de 29% da população mundial está exposta ao risco de inundações – ou seja: 2,2 bilhões de seres humanos. Mas a ampla maioria dessas pessoas vive bem longe do Brasil: na Ásia.
Quando nós analisamos todos esses eventos, percebemos que houve um aumento de 181% no número de inundações na década de 2010, em comparação com a década de 1980.
Não é difícil entender os motivos.
Em 1980, havia 4,4 bilhões de seres humanos na Terra. Hoje há 8,1 bilhões. A população mundial quase dobrou no período.
Não bastasse, em 1980, apenas 1,75 bilhão de seres humanos viviam em cidades, uma parcela bem menor do que a de habitantes no campo. Hoje esse número é de 4,45 bilhões. A população urbana no mundo mais que dobrou no período.
Em quatro décadas, nós entupimos as nossas cidades de bens e pessoas. E muitos dos nossos centros urbanos, por razões econômicas históricas, estão localizados próximos de grandes massas de água, como rios e mares.
Ou seja: nós temos um número imenso de pessoas vivendo nesse momento em cidades costeiras, como em nenhum outro momento na história.
Considere o nosso caso. No Brasil, mais de 70% da população reside numa faixa de terra distante no máximo 200 quilômetros do litoral. E exemplos como o nosso não faltam no mundo.
Ao longo dos últimos 30 anos, as enchentes causaram perdas econômicas para a humanidade na casa dos US$ 1,2 trilhão.
Ninguém é tão afetado quanto os países mais pobres. E há boas razões para isso.
Os países mais pobres tendem a alimentar uma infraestrutura desfuncional, além de maiores problemas de governança, menos recursos para gastar na recuperação de desastres naturais, e níveis mais baixos de acesso à proteção social, à educação e à saúde.
Além disso, é um fato incontestável que a parcela mais pobre da sociedade vive em áreas de maior vulnerabilidade e de maior risco de desastres naturais, e é a que mais sofre com eventos como o do Rio Grande do Sul.
Quanto mais pobre o país, maiores os riscos.
As famílias mais pobres normalmente têm casas menos resistentes a desastres naturais, e menos recursos financeiros para recorrer quando uma inundação deságua.
Mas mesmo gente rica sofre as consequências de uma grande enchente.
Por exemplo: após o furacão Sandy, em 2012, uma análise do mercado imobiliário de Nova York revelou que as propriedades localizadas em zonas de inundação tiveram uma desvalorização de 8%. As propriedades danificadas sofreram uma queda de valor de 17% a 22%.
A diferença nesse caso, entre os mais ricos e os mais pobres, é que as populações mais vulneráveis tendem a ser sugadas para um ciclo vicioso no mercado imobiliário, atraídas financeiramente, pela limitação no orçamento, a adquirir casas em zonas propensas a inundações. Enquanto as pessoas mais ricas têm maior probabilidade de abandonar uma área afetada por inundações.
Não bastasse, nos grandes desastres naturais, como o do Rio Grande do Sul, quando a atividade econômica permanece suspensa por muito tempo, a tendência é que ocorra falência generalizada de pequenas e médias empresas, já que elas têm níveis mais baixos de capital de giro e menores condições de suportar períodos de crise.
Nos Estados Unidos, até 60% das pequenas empresas que decretam falência após desastres naturais permanecem fechadas para sempre. Quando o furacão Harvey atingiu o Texas, em 2017, provocando grandes inundações, 13,5% das empresas da região desapareceram no trimestre seguinte. Só a cidade de Houston perdeu quase 25 mil empregos após o evento.
Mas mesmo empresas de grande porte podem ser vítimas de inundações, gerando efeito em cascata na economia.
Por exemplo: em 2011, a Tailândia foi atingida por enchentes que interromperam a produção de inúmeras fábricas do país, gerando perdas econômicas para as empresas envolvidas maiores do que os danos materiais das casas atingidas. Naquele ano, as exportações tailandesas caíram quase US$ 8 bilhões e as receitas fiscais do governo desabaram 3,7%.
As inundações também têm um impacto enorme na agricultura. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura calcula que as enchentes são a origem de quase 2/3 de todos os danos e perdas de colheitas no mundo.
Por exemplo: em janeiro de 2019, enchentes afetaram mais de dois milhões de hectares de soja e outras culturas na Argentina, vizinha do Rio Grande do Sul. As perdas foram equivalentes a 0,5% do PIB do país.
O impacto na agricultura é tão grande que, em 2020, as inundações afetaram negativamente a segurança alimentar de 35 países em desenvolvimento.
Portos e aeroportos também são vulneráveis às ações de enchentes. Esse estudo, publicado pela OCDE, estimou que as maiores cidades portuárias do mundo possuem ativos no valor de 5% do PIB global expostos a inundações.
Ao redor do mundo, mais de 1.200 aeroportos estão localizados numa zona costeira de baixa altitude. Muitos deles, como o Aeroporto Salgado Filho, estão sujeitos a enchentes.
Por fim, as inundações criam problemas crônicos para a saúde pública.
Em primeiro lugar, porque as águas das enchentes contribuem para surtos de doenças, como febre tifoide, cólera, leptospirose e hepatite A. As inundações também tem o poder de provocar um aumento de doenças transmitidas por vetores, como a dengue e a malária.
Mas os problemas não ficam restritos à ação da água.
Enchentes também podem causar danos significativos à saúde mental. Quando as inundações provocam mortes e destroem sonhos, atingem o potencial de perturbar comunidades inteiras, provocando um aumento nos casos de depressão e transtorno de estresse pós-traumático.
No Reino Unido, por exemplo, os sobreviventes de enchentes têm nove vezes mais probabilidades de sofrer com problemas de saúde mental do que a população em geral.
E o prejuízo com isso não é pequeno. Para os britânicos, o custo médio com a saúde mental, após uma enchente, varia de £1.878 a £4.136 por adulto (20% do custo dos danos físicos às casas e aos bens de consumo).
Levando tudo isso em consideração, os desafios do Rio Grande do Sul não são pequenos. Mas nós temos alguns bons indicativos de onde o calo aperta mais.
Em primeiro lugar, o poder público e a iniciativa privada precisarão enfrentar, com urgência e transparência, os problemas que afetam a infraestrutura do estado.
Por exemplo: o governo federal anunciou essa semana que destinará R$ 1 bilhão só para reconstruir, recuperar e desobstruir rodovias danificadas pelas chuvas no Rio Grande do Sul.
O governo estadual anunciou outros R$ 118 milhões para esse fim.
Mas essa é apenas uma pequena fração da ajuda necessária para enfrentar os problemas provocados pelas enchentes. E o tamanho do impacto das inundações na infraestrutura gaúcha só poderá ser mensurado quando as águas baixarem. Mas o Rio Grande do Sul não será capaz de se recuperar desse episódio se os gaúchos não forem alçados à condição de prioridade do país nesse momento.
Como sugeriu Aod Cunha, ex-secretário da Fazenda do estado, um bom caminho nessa direção passará pela negociação com a União de uma suspensão temporária do pagamento da dívida pública do Rio Grande do Sul. Aod sugere que essa medida esteja condicionada à demonstração da aplicação de recursos na recuperação econômica e social do estado.
E não adiantará jogar R$ 30 milhões nas mãos de um prefeito do interior. O governo estadual e federal deverão trabalhar em conjunto para oferecer estudos técnicos, científicos e de engenharia para a reconstrução do estado. Do contrário, será como enxugar gelo. Só dinheiro não resolve.
As famílias no campo também precisarão de atenção.
O agronegócio é responsável por cerca de 40% do PIB do Rio Grande do Sul.
A enchente colocou em risco 5% da produção da safra estimada de soja do país, 16% da safra estimada de arroz e 6% da safra de milho. A pecuária também está sofrendo.
A tendência é um aumento no preço do arroz e da carne em todo o país nas próximas semanas.
Quando o Rio Grande do Sul sofre, todos nós pagamos uma parte da conta. Os gaúchos são fundamentais na produção da comida que chega na mesa dos brasileiros.
Nos próximos meses, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, o Ministério da Agricultura e Pecuária, e os bancos públicos brasileiros, precisarão ser solidários com as famílias do campo gaúcho. As instituições que fomentam o agronegócio no país precisarão agir com diligência.
Será preciso oferecer uma ampliação para as linhas de crédito, ajuda para a renegociação das dívidas contraídas, crédito para capital de giro e a criação de um canal especial para monitorar as políticas de socorro ao agronegócio. O campo precisa ser ouvido.
Mesmo longe, você pode ajudar as famílias do agro gaúcho através das entidades citadas nessa reportagem do Estadão.
Mas nós também não podemos esquecer dos pequenos e médios comerciantes afetados pelas enchentes.
Nos últimos dias, o governo do Rio Grande do Sul criou o Gabinete de Apoio ao Empreendedor. É um bom início.
30% do PIB brasileiro é gerado pelas micro e pequenas empresas.
Os empreendedores gaúchos precisarão de apoio para renegociar as suas dívidas e acessar crédito. Mas antes de tudo: quando a lama baixar, eles também precisarão ser ouvidos pelo poder público.
Os mais pobres também não podem ser esquecidos – até porque eles são os mais afetados pelas enchentes. Os governos estadual e federal não devem medir esforços para acelerar o acesso a um auxílio emergencial para os gaúchos em condição de vulnerabilidade.
Nas próximas semanas, o Rio Grande do Sul precisará também dar uma atenção especial à dengue. Só nos primeiros quatro meses desse ano, o estado bateu recorde de mortes por dengue.
A tendência é que as chuvas incentivem um aumento dos casos nas próximas semanas.
O Ministério da Saúde e as secretarias municipais de saúde do Rio Grande do Sul também precisarão disponibilizar equipes de saúde mental para atender a população atingida pelas enchentes. O SESI tem um grande papel para cumprir nessa tarefa.
Por fim, minha última sugestão é a criação de uma festa para marcar a recuperação desse estado tão querido.
A Oktoberfest de Blumenau foi criada em 1984, depois da cidade ter sofrido com enchentes traumáticas. A festa foi usada para recuperar a economia da cidade e levantar a moral dos habitantes.
Não dá para negar que o plano deu certo.
Em 2022, a Oktoberfest gerou R$ 240 milhões para a economia local, além de seis mil empregos diretos e indiretos, com mais de 60 setores envolvidos na cadeia produtiva.
O Rio Grande do Sul merece abrigar o maior evento de tradições gaúchas jamais produzido para marcar a vitória que o estado terá sobre a tragédia. E brasileiros de todos os lugares poderão, enfim, ter a chance de visitar o estado e celebrar esse momento ao lado de seus amigos gaúchos.
Há certamente muitas coisas para serem feitas que não cabem num texto desse tamanho – do cuidado aos animais domésticos a políticas de proteção ao meio ambiente; do incentivo às doações privadas ao trabalho fundamental do terceiro setor; de projetos de prevenção a desastres naturais à melhora na coordenação do enfrentamento desses eventos.
Nas próximas semanas, nós precisaremos de mais pragmatismo e menos ideologia; menos polarização e mais boa vontade. Só apontar o dedo não irá resolver – é preciso arregaçar as mangas.
A boa notícia vem dos gaúchos: não tá morto quem peleia.
Viva o Rio Grande do Sul!
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10 artigos e reportagens para não perder
1. Brasil luta contra a natureza enquanto as ‘maiores inundações de todos os tempos’ submergem cidades inteiras, Channel4 (6/05);
2. Por que o Brasil é tão afetado por chuvas torrenciais, Deutsche Welle (6/05);
3. “É terrível. Há pessoas que perderam tudo e a água continua subindo”: o relato de dois argentinos presos em Porto Alegre, La Nación (5/05);
4. Inundações no Brasil: autoridades do agronegócio da região oferecem ajuda ao país vizinho, La Nación (5/05);
5. O que está acontecendo com o Brasil, onde tudo melhora e ninguém parece estar contente?, El País (3/05);
6. Ex-presidente Jair Bolsonaro é internado no Brasil por uma infecção na pele, Clarín (5/05);
7. Lula, do Brasil, convida o primeiro-ministro do Japão para comer a carne bovina de seu país e se tornar um adepto, Associated Press (4/05);
8. As florestas podem ser mais lucrativas do que a carne bovina?, The New York Times (2/05);
9. Madonna traz show gratuito massivo ao Rio, encerrando a turnê de celebração, The New York Times (5/05);
10. Madonna no Rio: por trás das negociações para um dos maiores shows da história, Billboard (5/03).
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